Reproduzo abaixo parte do texto de Rodrigo Viana, publicado no blog Conversa de Botequim, do meu amigo Bruno Ribeiro. Ao final do texto, um link para o texto integral. Uma discussão que merece todos os pontos de vista. Concordo com 90% dos argumentos abaixo.
Numa atitude cafajeste, alguns setores da sociedade brasileira apresentam a “proposta” de – ao se instituir uma Comissão de Verdade sobre a ditadura – investigar-se “os dois lados”.
Não faz o menor sentido.
É como se, ao fim do nazismo, alguém propusesse: “Ok, vamos investigar os carrascos, mas é preciso levar ao banco dos réus também os judeus que resistiram ao legítimo regime nazista”.
Estou a exagerar? Não creio.
Os militantes de esquerda já foram punidos: alguns julgados, muitos presos e torturados, vários executados, encarcerados.
Falar em “investigar os dois lados” é torturar de novo os que sobreviveram, é torturar a memória dos que se foram.
Isso é cafajestagem. Não há outro nome.
É preciso investigar os que seguem impunes. Assassinos e torturadores.
A Justiça poderá puni-los? Talvez. Mas o principal é estabelecer a verdade. O resto é consequência.
Respeito aqueles que – como o professor Paulo Brossard, por exemplo – manifestam sua opinião contra a revisão da “Lei de Anistia”. Ex-ministro, humanista, Brossard não apela para a cafajestagem. Ele acha que a lei é fato consumado e que impede punição aos que atuaram na ditadura.
Humildemente, eu que não sou jurista, mas já entrevistei muita gente sobre esse assunto, gostaria de lembrar: a “Lei de Anistia” não precisa ser abolida para que a Comissão de Verdade se estabeleça.
A Comissão não vai punir ninguém. Vai, simplesmente, fazer um relatório oficial – conduzido por representantes da sociedade, mas com aval do Estado brasileiro – sobre as atrocidades cometidas por agentes do Estado durante a ditadura. A Comissão vai dizer: “fulano foi preso em tal circunstância, foi preso em tal instalação militar, torturado sob as ordens do comandante tal e qual, desapareceu no dia tal, sabe-se que o corpo foi levado para tal vala comum etc.”
É uma satisfação às famílias. É um acerto de contas com a memória do país. Na Argentina, no Chile (e também na África do Sul, ao fim do Apartheid) comissões desse tipo se estabeleceram.
No Brasil, o Estado omitiu-se. Coube a Dom Paulo Evaristo Arns (então arcebispo de São Paulo, até hoje detestado por parte da elite brasileira, por ter-se posicionado contras as violações e abusos) comandar a investigação que resultou no relatório “Brasil, Nunca Mais”.
Não foi o Estado que fez a investigação. Mas um grupo da sociedade civil. Sem acesso a arquivos, com todas as limitações que se possa imaginar. O Estado brasileiro precisa prestar contas do que se passou.
As Forças Armadas, inclusive, não merecem carregar esse fardo do passado. Sem dar nomes, sem um acerto de contas, o passado vai voltar a assombrar o Brasil e os militares (e a imensa maioria deles não tem responsabilidade pelos atos cometidos durante a ditadura).
A Comissão é necessária, é justa, está baseada em boas experiências internacionais. Não há nada de “revanchismo” nisso. Revanchismo seria pegar os torturadores e pendurá-los no pau-de-arara, ou arrancar-lhes as unhas e dentes. Não é isso que se propõe. Mas um acerto de contas civilizado.
Pode-se entender, ao fim de tudo, que não se poderá punir ninguém. Essa é outra discussão, que se dá no STF.
A OAB entrou com uma ação, pedindo que o Supremo decida: torturador pode ou não ser punido? A Lei de Anistia protege os torturadores?
Há quem entenda que não. O argumento é o seguinte: tortura é crime contra a Humanidade, imprescritível, e o Brasil assinou tratados internacionais nesse sentido; portanto, Lei nenhuma pode valer mais do que tratados internacionais. O STF vai decidir.
Enquanto o STF não decide, algumas famílias usam uma estratégia inteligente. A família Teles, por exemplo, entrou com uma ação declaratória, na Justiça, pedindo que o coronel Brilhante Ustra fosse declarado responsável por torturas quando comandou DOI-CODI em São Paulo. O juiz, em primeira instância, deu ganho à família.
Vejam: é uma ação cível. Não se trata (por hora) de punir Ustra (até porque ele poderia trancar a ação usando justamente a “Lei de Anistia”).
Imaginemos que o STF entenda que torturador não pode ser punido penalmente. Seria lamentável. Mas teríamos que respeitar.
Ainda assim, a Comissão de Verdade poderia concluir seu trabalho. E, ao final, dezenas de “ações declaratórias” (como a ajuizada pela família Teles) poderiam ser abertas, com base no relatório da comissão.
As famílias têm sido ignoradas pela grande imprensa no Brasil. Os jornais estão ocupados em fustigar o presidente Lula – acusando o governo de “revanchismo” nesse episódio.
(Rodrigo Vianna)
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