sexta-feira, 29 de maio de 2009

A violência inaceitável das torcidas

O futebol é reconhecidamente o esporte que atrai o maior público em todo o mundo, com torcidas apaixonadas movimentando uma roda econômica gigantesca, com uma infraestrutura globalizada que mantém acesa uma chama intensa de fervor e dedicação. Desde os jogos nos pequenos campos de diversão aos grandes estádios, a paixão é a mesma, dando forma a sonhos de realização e do sentido de fazer parte de um grande organismo que vibra na mesma frequência.

Nos tempos modernos, o profissionalismo atingiu os grandes clubes que se tornaram empresas de entretenimento, gerando contratos e receitas milionários, e seus personagens são ídolos em todos os cantos do globo. Em todos os continentes e em todas as linguagens, prevalece a habilidade com os pés, tomando a forma de um fenômeno sem fronteiras capaz de congregar nações e fazer prevalecer o espírito esportivo.

As camisas e bandeiras são hoje símbolos que arrebatam torcedores fanáticos de todos os níveis, desde os que são capazes de acompanhar seus clubes de coração com entusiasmo, àqueles que perdem a noção do esporte e incorporam a violência onde deveria ser festa, disputa organizada, diversão e lazer. Infiltram-se na multidão e dão vazão a seu instinto bárbaro, manchando o ambiente com xingamentos, agressões e atitudes inconvenientes.
Em todo mundo são identificados arruaceiros que invadem estádios para promover baderna, brigas e bebedeiras, estendendo até às ruas sua sanha bárbara de criar confusão onde deveria haver respeito. Nos estádios europeus onde nem é preciso fossos e altos alambrados para proteger os atletas, há um notável esforço para que os torcedores possam assistir aos jogos com conforto e segurança, e os incidentes violentos são quase exceções.

No Brasil, o espírito exacerbado dos torcedores tem caracterizado o esporte como de violência fora campo. O comportamento das torcidas acaba sendo notícia das páginas policiais antes das de esporte, frequentemente com mortes e graves agressões que sacodem as comunidades onde se realizam os jogos. O caso de torcedores do Fluminense que invadiram o centro de treinamentos do clube, agredindo jogadores é emblemática, justamente por não ser um caso isolado. É bastante comum que um grupo de torcedores, geralmente pequeno, envolva-se na política interna dos clube e passe a assediar os profissionais, exigindo uma atenção que não lhes é devida. Caso semelhante aconteceu na Ponte Preta, um dos incidentes que levaram à saída do treinador Marco Aurélio e o diretor Dicá do clube.

Ao torcedor cabe incentivar seu time, vaiar quando achar adequado, até xingar os protagonistas do jogo, mas seu papel se encerra aí, nas arquibancadas. Querer exigir maior participação nas decisões internas e profissionais do clube é exceder sua importância e grau de ingerência. Em grande parte, a culpa é dos próprios dirigentes, politicamente posicionados ao lado das torcidas organizadas, financiando suas atitudes, franqueando ao cesso aos estádios, facilitando a pressão nos treinos. Muitas vezes, o feitiço vira contra o feiticeiro e os baderneiros tornam-se os inconvenientes vilões das crises.

(Correio Popular, 29/5)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Maus hábitos não se mudam por decreto


As escolas sempre foram uma referência no processo de educação de crianças e jovens, local onde são aperfeiçoados os ritos sociais através da difusão do conhecimento, do aprendizado direcionado, das experiências de relacionamento, construindo gerações nos moldes preconizados pela sociedade como ideais. É nas escolas que se completa o ciclo da educação familiar, onde as pessoas desenvolvem sua cultura, seu ciclo de convivência e a própria personalidade.

De algum tempo, os costumes se deterioraram grandemente no Brasil e as instituições de ensino público, de modo geral, perderam a aura devida de respeito e reverência. Os prédios deixaram de ser encarados como "templos do saber", como chegaram a ser nominados em décadas passados, e hoje são cobertos de garranchos de pichações, sujeira, falta de manutenção. Professores são afrontados diariamente, a violência é marcante em muitos locais e a disciplina se impõe pelo esforço, carisma e didática de funcionários e docentes, não mais pelo respeito que o ambiente deveria suscitar.

O resgate das qualidades das instituições de ensino deve obedecer um sério planejamento que implica em investimentos maciços, provimento da qualificação e remuneração digna de professores, e recuperação dos imóveis, ao par de um programa extensivo de aperfeiçoamento didático e pedagógico. Entre as transformações esperadas, alguns gestos podem ser emblemáticos, como a decisão do governo de São Paulo que proíbe a comercialização ou consumo de bebidas alcoólicas dentro das escolas estaduais. A lei foi promulgada nesta semana , proposta por projeto de lei do deputado Celso Giglio.

É fora de discussão a conveniência de estabelecer séria restrição ao consumo de bebidas no ambiente escolar. É comum se ver jovens consumindo bebidas em horários de aulas ou intervalos, em especial no Ensino Superior, com a venda nos próprios estabelecimentos, campus ou proximidades. É importante disseminar que existe hora e lugar para o consumo e, certamente, o calendário escolar não contempla este hábito. O debate provocado por esta matéria deveria suscitar outras medidas que restringissem a venda de bebidas no entorno de escolas de todos os níveis e implantassem rigorosa fiscalização contra a venda de álcool a menores de idade.

No entanto, mais uma vez o espírito altamente regulador do governador José Serra excede à intenção e provoca efeito colateral exagerado, ao impedir a venda de quentão e bebidas em eventos realizados no espaço das escolas. Desconsidera que essas promoções são normalmente promovidas pelo corpo diretor das instituições, em parcerias com associações de pais, fora do período letivo, muitas vezes levantando recursos para reformar ou equipar as escolas deixadas ao léu pelo Estado.

Revela, no mais das vezes, como no caso da legislação antitabagista ou a restrição à venda de frituras nas cantinas, uma indisfarçada noção de que hábitos tidos como inconvenientes podem ser removidos da sociedade por decreto, o que é por si só um mau costume.

(Correio Popular, 27/5)

terça-feira, 26 de maio de 2009

Tragédia que denuncia a insensibilidade

A organização de um evento de porte exige um grande aparato logístico que não é para amadores. Os detalhes de concepção, produção e acompanhamento dependem muito da categoria de profissionais que se formou ao longo dos anos e da tradição. Quando se fala em promover uma festa com dezenas de milhares de pessoas, a responsabilidade é amplificada enormemente, exigindo infraestrutura adequada de recepção, estacionamento, segurança, fluxo, equipamentos de som e iluminação ambiente, serviços gerais e pontos comerciais, harmonizados de forma a atender ao público e garantir diversão sem transtornos.

Os maiores eventos que ocupam a agenda popular são as chamadas festas de peão, hoje transformadas em palco de músicos de todos os gêneros, atraindo audiências diversificadas e sendo importantes atrativos de turismo, movimentando a economia das cidades envolvidas, gerando empregos e receita.

Quando falha o planejamento, a organização e o atendimento a todos os quesitos de segurança, as consequências são graves. A tragédia ocorrida neste final de semana durante a realização do rodeio de Jaguariúna, onde quatro jovens foram mortos pisoteados, lançou uma luz de reflexão sobre o risco de eventos deste porte, onde milhares de pessoas ficam sujeitas a situações de acidentes e danos que muitas vezes são acobertados pela pouca gravidade ou por passarem desapercebidos da maioria.

Depois dos acontecimentos da madrugada de sábado, não há mais como fazer vistas grossas à falta de organização destes eventos. O rodeio de Jaguariúna vem crescendo em importância e proporção ao longo dos anos, sendo cotado entre os três maiores do Estado de São Paulo. As programações são de alto nível e não são poucas as pessoas atraídas durante os três finais de semana do evento. Em anos anteriores já foram registrados problemas de organização, com congestionamentos enormes, entraves de acesso à arena de shows e rodeios, falta de estacionamento regulamentado, além dos inconvenientes típicos da aglomeração de jovens, associados ao consumo de bebidas, com o registro de brigas e atos importunos.

O episódio trágico deixou claro que faltou previsão dos organizadores, que não consideraram as condições de acesso e saída, a possibilidade de incidentes que exigissem circulação de seguranças, assistência médica. A superlotação foi o ingrediente fatal para que a diversão se transformasse no final dramático e agora se buscam os responsáveis. É preciso que estas festas estejam sujeitas a criteriosas normas, como os estádios de futebol que reduziram sua capacidade de público em nome da segurança.

A resposta mais pronta que se pode atribuir é a ganância que sobrepujou o bom senso, a irresponsabilidade que veio à tona a partir de uma série de detalhes que culminaram na morte de jovens inocentes. Lamentável ainda imaginar que houve a tentativa de manter a programação festiva durante o final de semana, no mesmo lugar, como se fosse possível buscar diversão diante da dor das famílias das vítimas e da sociedade, escandalizada com a falta de decoro em momentos tão difíceis.

(Correio Popular, 26/5)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Falta de humanidade em Jaguariúna

Uma pergunta que fica no ar. Depois da tragédia acontecida no Rodeio de Jaguariúna, onde quatro jovens morreram pisoteados, ainda há quem tenha espírito para assistir algum show no local?

O que dizer da pressa em tentar remarcar o evento e da cobrança de algumas pessoas que queriam que a festa continuasse?

Briga de gangues pode ter iniciado tumulto no rodeio

A organização do Jaguariúna Rodeo Festival, em Jaguariúna, informou domingo que imagens gravadas pelo circuito interno de câmeras de segurança indicam a possibilidade de que o tumulto que deixou quatro mortos e ao menos 11 feridos tenha começado com uma briga entre duas gangues, em um dos corredores que davam acesso à arena do complexo de eventos. A confusão aconteceu na madrugada de sábado.
O secretário de Comunicação de Jaguariúna, José Orlando Dutra Santos, disse que as imagens foram disponibilizadas para a comissão formada por representantes do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Crea), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Corpo de Bombeiros, que ajudará nas investigações. 'Eu tive informação de que realmente foi isso que aconteceu, o enfrentamento de duas gangues, mas não posso garantir, porque não vi as imagens', disse. 'A informação que vaza é de que foi enfrentamento entre duas gangues.
As imagens foram recolhidas e não estão em poder dos organizadores. A assessoria de imprensa do evento informou desconhecer o destino do material. O delegado de Jaguariúna, Ruy Prado Marcondes, não esteve na delegacia hoje. Funcionários disseram que novas informações sobre a investigação da tragédia serão divulgadas nesta segunda.

CANCELAMENTOAs atividades do Jaguariúna Rodeo Festival, incluindo os shows da dupla Victor & Léo no sábado (23) e de Roberto Carlos no domingo (24), foram canceladas pela Justiça. A ordem de proibição das atividades foi expedida pelo juiz Fabrício Reali Zia, da Justiça de Amparo, no início da tarde deste sábado (23) e atendendo a pedido do Ministério Público. A decisão de Zia está fundamentada no artigo 144 da Constituição Federal: “A segurança pública é dever do estado”, cita o juiz na ordem. Dessa maneira, de forma preventiva, o juiz entendeu prudente determinar o cancelamento das apresentações.

Segundo o diretor de Fiscalização da Prefeitura de Jaguariúna, Luiz de Azevedo, os organizadores não conseguiram a liminar liberando o evento, cancelado após a tragédia da madrugada de sábado, quando quatro pessoas morreram pisoteadas.

(Acompanhe o noticiário pelo Cosmo on Line- http://www.cosmo.com.br/)

Palavrão no alicerce da Educação


A educação formal dos brasileiros vive uma situação de dualidade, merecendo toda a atenção e projetos importantes para o resgate de sua importância, ao tempo em que apresenta situações críticas extremas, como o abandono de escolas, falta de materiais e professores, prédios depredados e alunos despreparados, saídos das salas de aula como alfabetizados funcionais. Não faltam projetos de reformulação do padrão de ensino, com a introdução de práticas pedagógicas de todas as vertentes, assim como arautos da modernização de um setor onde as deficiências são visíveis e os investimentos acanhados.

O Estado de São Paulo tem se destacado por iniciativas importantes na área da Educação, reconhecidas as enormes dificuldades impostas a discentes e docentes, com programas inovadores introduzidos nas salas de aula, ao passo de políticas públicas relevantes. Não são suficientes para minimizar os impasses registrados em escolas estaduais abandonadas, tampouco a má remuneração de professores e funcionários, mas há que se admitir avanços que têm servido de base até mesmo para outros estados onde os padrões escolares são dramáticos.

Para a opinião pública, graves deslizes acabam por afetar profundamente a seriedade do que se busca, como o programa Ler e Escrever, dedicado a oferecer material de leitura para os estudantes das escolas públicas, distribuindo livros como material didático a ser explorado por coordenadores pedagógicos. A distribuição absolutamente equivocada de 1.216 exemplares do livro Dez na área, Um na Banheira e Nenhum no Gol, uma coletânea de histórias em quadrinhos sobre temas relacionados a futebol assinada por vários autores de renome, é mais um fato que mostra o ponto a que pode chegar a irresponsabilidade no serviço público. Os livros, previstos para serem disponibilizados para alunos da 3a série do Ensino Fundamental, com idade em torno de nove anos, é cheio de palavrões e insinuações de situações de sexo.

O governador José Serra amarga com este episódio mais uma situação constrangedora. No mês de março, já virara notícia a distribuição de material didático na rede pública com erros crassos. Um livro didático de geografia teve 500 mil exemplares distribuídos com um atlas onde apareciam dois Paraguais. Oficialmente, os fatos não se relacionaram, mas a secretária de Educação foi afastada na semana seguinte em que apareceu em rede nacional minimizando em entrevista a gravidade do caso.

A reação ao mais recente episódio foi rápida. Os livros foram recolhidos, o erro admitido e fala-se em punição exemplar aos responsáveis pelo absurdo. Não se pode comprometer, contudo, a tentativa de aprimorar a qualidade do ensino e o esforço de oferecer material didático para os alunos. As falhas grosseiras como essas devem ser condenadas e as cobranças devem sinalizar a correção de erros ainda mais graves que ocorrem na definição dos quadros de carreira, remuneração de professores, infraestrutura dos prédios e falhas na alfabetização.

(Correio Popular, 25/5)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Luto na casa no campo

Zé Rodrix recolheu seus discos e livros e foi compor rocks rurais no céu

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais

Eu quero carneiros e cabras pastando
Solenes no meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
E um filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão,
A pimenta e o sal

Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau a pique e sapê
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros e nada mais

(Casa no Campo, Tavito e Zé Rodrix)




quinta-feira, 21 de maio de 2009

Desvio de caráter em Santa Catarina

O caráter solidário do povo brasileiro já foi exaustivamente testado em inúmeras campanhas desencadeadas, com imediata adesão de todos os segmentos da sociedade mobilizados e atentos às carências da sociedade. Em vários níveis, a participação voluntária é perceptível, muitas vezes com instituições e grupos agindo em paralelo à responsabilidade do Estado, oferecendo verdadeiras lições de altruísmo e doação.
Ao par deste infatigável exército benemerente sempre têm os espertos, os demais que sempre procuram tirar vantagem de tudo, aqueles para quem as palavras corrupção, honestidade, vergonha na cara, ética ou espírito público não tem qualquer sentido prático. São aqueles que se locupletam da desgraça alheia, que crescem com a miséria e não são capazes de demonstrar qualquer gesto de solidariedade, compaixão ou respeito. Os que aparecem muito comumente no noticiário policial, econômico ou político denotando a existência de um câncer social facilmente identificável e de difícil extirpação.
Quando as tempestades castigaram o Sul do País em novembro do ano passado, deixando um triste rastro de destruição e mortes em Santa Catarina, os espíritos solidários se levantaram em consternação e trataram de promover campanhas de Norte a Sul para arrecadar roupas, mantimentos e tudo que fosse necessário para ajudar os desabrigados a recompor suas vidas com dignidade. Foi um ato marcante do caráter brasileiro, que não fecha os braços diante das dificuldades e esquece diferenças na hora de ajudar o próximo. A resposta foram toneladas de doações levadas ao Estado sulista, em atendimento ao apelo dirigido às pessoas de boa vontade.
Ao vir a público a denúncia de que 350 mil peças de roupas, calçados, alimentos e colchões doados às vítimas das enchentes estavam armazenadas e sendo vendidas por um empresário, a comoção pública se transformou em profunda repulsa. Ismael Ratzkob desviou o material com a conivência de alguém da prefeitura de Ilhota e abriu três pontos de venda como brechós. Alegando não ter feito nada errado, o empresário disse apenas que o material seria “sobra das enchentes”. Não bastasse o fato de haver ainda milhares de desabrigados no Nordeste do País, que poderiam ser beneficiados com o reencaminhando das doações. Pelo menos, foi preso sob acusação de receptação e formação de quadrilha.
Fatos como esse alimentam a sensação de que o povo brasileiro acaba tendo que conviver com uma classe de pessoas desprovidas de moral, sem qualquer pudor de fazer seus trambiques, de aproveitar-se dos vácuos legais da sociedade para tirar proveito de tudo. Nestes casos, é preciso agir com rigor, impor uma punição exemplar para impedir que gestos como esses sejam cercados de impunidade, gerando uma tropa desqualificada que acaba por eleger seus iguais na política.


(Correio Popular, 21/5)

Construção


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague


(Construção, Chico Buarque)


terça-feira, 19 de maio de 2009

A CPI da Petrobras

Todo impasse político deve ser tratado com absoluta transparência e seriedade, sem o que as negociações tendem a ser obscuras e abrigarem interesses escusos. Em tempos de alta desqualificação da classe política brasileira, abalada por tantos escândalos e marcas de corrupção, nada mais necessário que venham às claras todas as denúncias e seus responsáveis indiciados pelas irregularidades. Toda tentativa de acobertar escândalos apenas demonstra irrefreada intenção de fazer escapar das malhas da Justiça os crimes cometidos.
Ao propor a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar irregularidades na Petrobras, o Senado abriu a torrente de mais um escândalo político que poderá assumir proporções extraordinárias ou apenas revelar-se mais um instrumento de exploração partidária de esquemas de desvio de verbas no setor público, no caso envolvendo uma das mais tradicionais e conceituadas empresas nacionais. O risco iminente não afasta a possibilidade e o interesse em instituir mais uma CPI, desde que respeitados os limites de atuação do Legislativo e se tenha como mote principal esclarecer fraudes e desvios de dinheiro apontados pela Polícia Federal.
A tensão em torno do assunto é evidente. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apressou-se em condenar a bancada tucana no Senado pela criação da CPI, taxando de irresponsável e oportunista a iniciativa, esquecendo-se de que outros partidos deram apoio à criação da comissão. Ao perder espaço na tentativa de desqualificar o trabalho dos senadores, Lula perdeu o primeiro round de uma queda de braço que tende a se desdobrar em intenso noticiário político. Ao assacar a crise econômica internacional como desculpa para que o assunto não seja levantado, Lula compromete a sua seriedade e avança atabalhoadamente sobre a competência do Congresso.
A economia brasileira tem vivido momentos de tensão e apreensão por parte de investidores, que procuram por âncoras seguras onde aportar seus interesses durante o desdobramento da crise financeira que abalou as estruturas do sistema financeiro, principalmente nos nichos do capital especulativo mundial. O período de instabilidade, no entanto, não se presta a justificar vista grossa sobre as denúncias. O esquema levado ao Ministério Público dá conta de fraudes em licitações, sonegação fiscal e irregularidades no repasse de royalties. A Petrobras é um patrimônio nacional, uma das mais fortes âncoras da economia brasileira, mas não está isenta de fiscalização, e por isto deveria ser a primeira a ostentar transparência em seus negócios, até por conta de seus investidores e acionistas.
Da parte dos parlamentares, é exigível serenidade e objetividade, até porque os muitos exemplos de comissões redundaram em explícitos palanques de oposição, onde mais valiam a arrogância e discurso inflamado de seus membros que o real esforço de investigação. Com o interesse maior da Nação em jogo, não é tempo de transformar o episódio em escambo político.

(Correio Popular, 19/5)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Don't Wanna Grow Up

When I'm lyin' in my bed at night
I don't wanna grow up
Nothing ever seems to turn out right
I don't wanna grow up
How do you move in a world of fog that's
always changing things
Makes wish that I could be a dog
When I see the price that you pay
I don't wanna grow up

I don't ever want to be that way
I don't wanna grow up
Seems that folks turn into things
that they never want
The only thing to live for is today...
I'm gonna put a hole in my T.V. set
I don't wanna grow up

Open up the medicine chest
I don't wanna grow up
I don't wanna have to shout it out
I don't want my hair to fall out
I don't wanna be filled with doubt
I don't wanna be a good boy scout
I don't wanna have to learn to count
I don't wanna have the biggest amount
I don't wanna grow up

Well when I see my parents fight
I don't wanna grow up
They all go out and drinkin all night
I don't wanna grow up

I'd rather stay here in my room
Nothin' out there but sad and gloom
I don't wanna live in a big old tomb on grand street
When I see the 5 oclock news
I don't wanna grow up

Comb their hair and shine their shoes
I don't wanna grow up
Stay around in my old hometown
I don't wanna put no money down
I don't wanna get a big old loan
Work them fingers to the bone
I don't wanna float on a broom
Fall in love, get married then boom
How the hell did it get here so soon
I don't wanna grow up

(Don't Wanna Grow Up, de Tom Waits, gravação Ramones)


Não quero crescer

Quando estou à noite em minha cama
Não quero crescer
Sempre nada parece se mostrar direito
Não quero crescer
Como você move um mundo de névoa
Que está sempre mudando as coisas
Me faz desejar que eu fosse um cachorro
Quando eu vejo o preço que se paga
Não quero crescer

Não quero ser sempre daquele jeito
Não quero crescer
Parece que os caras se tornan coisas
Que nunca quiseram ser
A única coisa para se viver é o hoje...
Vou fazer um buraco em meu aparelho de TV
Não quero crescer

Abra o caixa de medicamentos
Não quero crescer
Não quero ter de gritar
Não quero que meu cabelo caia
Não quero ficar cheio de dúvidas
Não quero ser um bom escoteiro
Não quero ter de aprender contar
Não quero ter a maior grana
Não quero crescer

Bem quando vejo meus pais brigarem
Não quero crescer
Todos saem e bebem a noite toda
Não quero crescer

Fico bastante em meu quarto
Nada lá fora além de tristeza e obscuridade
Não quero viver numa velha e grande tumba numa rua principal
Quando vejo as noticias das cinco horas
Não quero crescer
Ficar dando voltas em minha velha cidade natal
Não quero desprezar nenhum dinheiro
Não quero adquirir um grande empréstimo
Nem gastar meus dedos no trabalho até os ossos
Não quero flutuar numa vassoura
Me apaixonar, casar e então a explosão
Como diabos chegou aqui tão rápido?
Não quero crescer


Listas fechadas, golpe antidemocrático

A sociedade está no limite da tolerância em relação aos escândalos que se sucedem no meio político. Ecoa cada vez mais alta a indignação das pessoas com as artimanhas engendradas nos bastidores dos parlamentos e sedes de governo, demonstrando total irresponsabilidade e desapego à causa pública. A regra é levar vantagem e usufruir dos instrumentos de perpetuação no poder, ainda que isto fira princípios morais e éticos, e a desesperança é característica maior dos eleitores mais conscientes.

Os últimos acontecimentos trazidos ao conhecimento das pessoas descredenciam os atuais detentores do poder político, desmoralizados na razão direta de seu envolvimento com o ilícito e com o compadrio que lhes preserva a imunidade que deveria se dobrar nas barras dos tribunais e não apenas nos gabinetes infestados de ações judiciais guardadas no escaninho do esquecimento. Governantes e parlamentares devem satisfação à sociedade, ao contrário do conceito estreito e rasteiro do deputado Sérgio Moraes, que declarou estar "se lixando" com a opinião pública. Infelizmente, o sistema atual passa perto de dar razão ao deputado, ao garantir aos denunciados sucessivas reeleições à margem da verdadeira vontade popular.

Diante do descalabro que caracteriza a vida pública neste País, torna-se mais que oportuna a retomada do debate sobre uma profunda e necessária reforma política, uma alteração no sistema representativo que resgate a legitimidade e garanta a democrática renovação dos mandatos, rompendo o ciclo vicioso do uso do poder para manter nichos e currais eleitorais. É preciso reavaliar os pressupostos democráticos que permitem o voto do analfabeto, a compulsoriedade do voto, a organização partidária, o financiamento de campanhas e a proporcionalidade, elementos que podem ser conduzidos a uma outra realidade que comporte a renovação sistemática dos representantes.

A resposta do Congresso Nacional não poderia ser outra. Disfarçada de uma reforma política moralizadora, articula-se nos bastidores e escritórios dos partidos a instituição do voto em listas fechadas, instrumento inescrupuloso que transfere às agremiações políticas a decisão de indicar os eleitos, à revelia da vontade dos eleitores. A imoralidade consiste em apresentar uma lista de candidatos indicados em ordem determinada pelos partidos, cabendo ao eleitor apenas a decisão do voto de legenda. A consequência é óbvia, a perenização dos nomes consagrados em termos de imagem pública, a despeito de sua relevância direta para os cidadãos.

A proposta mostra-se tão inconsistente quanto a estrutura dos partidos políticos, que há tempos deixaram de aglutinar ideologias e propósitos e transformaram-se em balcão de alianças e acordos. O desejo da sociedade é no sentido inverso, da real valorização do voto individual, que coloque nos cargos públicos aqueles que realmente tenham o cacife escolha popular, livre, responsável e direta. Há várias fórmulas e, com certeza, nenhuma delas passa pela perspectiva das listas fechadas de candidatos.





(Correio Popular,18/5)

domingo, 17 de maio de 2009

A praga do bullying

As relações sociais são determinadas pelo nível de cultura e civilidade de cada cidadão, determinados pelo conjunto de características individuais e pelos grupamentos determinados pelas escalas de convivência. Em maior ou menor grau, o relacionamento é aprofundado pelo tempo em que as pessoas permanecem unidas por contingências ou interesses comuns, não raro criando laços de amizade.

As escolas são importante campo para o desenvolvimento dos parâmetros de convivência e para estabelecer regras de socialização. As crianças passam a maior parte do tempo com seus colegas e professores, além de estender seu relacionamento para atividades extra classe, o que dá uma dimensão de importância para as bases que são sedimentadas nesta fase da vida.
O comportamento de crianças e jovens é marcado pela experimentação dos sentidos. As brincadeiras são, em essência, representações de um teatro anímico onde são testados os limites de cada um, traçando as ascendências no grupo, as lideranças, as influências que permearão os relacionamentos. Neste contexto, surgem os excessos, os atritos, os abusos traduzidos em perseguições, agressões e violência de todos os modos que deixam profundas marcas.


O bullying não é fenômeno novo. Desde sempre as escolas foram palco de perseguições entre alunos, muitas vezes ao largo do controle de professores e responsáveis, levando a traumas graves e perturbações que acompanham a pessoas pela vida afora. Agora, dá-se um nome à atitude e especialistas conseguem avaliar a gravidade do que não pode mais ser tratado como uma brincadeira infantil. A perseguição é um caso sério e deságua em mais violência que precisa ser estancada em sua origem.

Reportagem publicada nesta edição mostra o lado perverso do bullying. Pesquisas mostram que o fenômeno não tem limites e o pátio das escolas é o lugar onde a opressão toma a forma das zombarias eivadas de preconceito, discriminação, violência implícita, contrangendo seriamente algumas crianças, sempre selecionadas entre os que são "diferentes", seja por característica física, comportamento ou postura social.

É preciso que a sociedade seja finalmente despertada para a gravidade da situação, sob pena de construir uma geração desrespeitosa, incivilizada e violenta. As crianças perseguidas são vítimas de uma forma cruel de opressão, feita às vistas de todos e sob complacência dos responsáveis. A situação é grave, até porque o bullying assume a cada dia contorno mais impiedoso, insensível.
Se a agressão sempre foi uma constante na história das relações entre estudantes, agora é ainda mais séria. Em um mundo em que os jovens não respeitam mais o próprio espaço, chegam a agredir e ameaçar professores, têm laços familiares difusos, é possível imaginar o nível de agressividade que podem assumir para subjugar seus companheiros. É preciso que toda criança e jovem nas escolas tenham a atenção de professores e diretores. Os pais têm o direito de serem imediatamente notificados de alterações de comportamento e constrangimento de seus filhos. As sequelas do bullying são graves e não podem depender de chegar a níveis absurdos para que a proteção seja estendida às vítimas.


(Correio Popular, 17/5)


sábado, 16 de maio de 2009

Alagados


Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de TV
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê

Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de TV
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê

(Alagados, Paralamas do Sucesso: Herbert Viana/ Bi Ribeiro)

O respeito ao direito de todos os cidadãos

Os mecanismos que garantem o direito de cada cidadão, em qualquer situação, devem ser constantemente aperfeiçoados, ajustados às novas realidades, dispensando recursos essenciais para que não haja prejuízo ou entrave para o exercício pleno da cidadania. A organização social pressupõe que cabe ao Estado a intermediação em questões de direito, protegendo os cidadãos e assegurando o cumprimento das leis e normas.

A falta de civilidade de grande parte da população leva a constantes quadros de conflito, onde a falta de atuação dos poderes de polícia e segurança dá azo a que infratores permaneçam impunes e os afetados mantidos em prejuízo do que lhes cabe. Caso típico são os espaços destinados a idosos e pessoas com deficiência em estacionamentos, constantemente desrespeitados por aproveitadores que não têm a menor noção de responsabilidade e reverência pelo que é assegurado não como um privilégio, mas uma concessão que visa estabelecer condições de igualdade para todos os cidadãos.

Campinas começa a discutir a aplicação de multas a quem desrespeitar o espaço reservado no entorno de estabelecimentos comerciais. Projeto de lei do vereador Aurélio Cláudio prevê que a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec) fiscalize, multe e recolha veículos que estiverem ocupando irregularmente as vagas reservadas. O prefeito Hélio de Oliveira Santos vetou o projeto alegando que cabe à União legislar sobre o assunto. A Câmara derrubou o veto e deve promulgar a legislação dentro de 15 dias. Independentemente das argumentações legais, o assunto assume a sua verdadeira importância e entra na pauta de debates necessários sobre o tema.

O desrespeito é flagrante e mostra o alto grau de incivilidade de muitos motoristas que ignoram a lei - até mesmo a sinalização, em alguns casos - e agem como oportunistas, sempre com a alegação que ocupam o espaço indevido por poucos instantes. As empresas, mormente supermercados e shopping centers, mostram-se constrangidos de advertir seus clientes inconvenientes e os órgãos de trânsito se veem impedidos de atuar em áreas tidas como privadas. Preferem submeter-se à indignação da minoria que têm o legítimo espaço para facilitação de locomoção, usurpados em seu direito e sem ter a quem reclamar, além do protesto que ecoa nos estacionamentos vazios e nos balcões de reclamação.

O respeito ao direito de idosos e pessoas com deficiências não é favor. É lei e sinal de civilidade. A lei faz-se cumprir com a indispensável fiscalização e aplicação de sanções aos infratores. A civilidade se obtém com um longo processo de educação, de construção da consciência comunitária e da convivência hamoniosa e respeitosa. O que, infelizmente, não se consegue somente por força da lei, mas principalmente através campanhas de conscientização para construir uma nova geração de pessoas que respeitem o direito do próximo para garantir a própria liberdade cívica.

(Correio Popular,16/5)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Todo azul do mar


Foi assim, como ver o mar
A primeira vez que os meus olhos se viram no seu olhar
Não tive a intenção de me apaixonar
Mera distração e já era momento de se gostar
Quando eu dei por mim nem tentei fugir
Do visgo que me prendeu dentro do seu olhar

Quando eu mergulhei no azul do mar
Sabia que era amor e vinha pra ficar
Daria prá pintar todo azul do céu
Dava prá encher o universo da vida que eu quis prá mim

Tudo que eu fiz foi me confessar
Escravo do teu amor, livre para amar
Quando eu mergulhei fundo nesse olhar
Fui dono do mar azul, de todo azul do mar

Foi assim, como ver o mar
Foi a primeira vez que eu vi o mar
Onda azul, todo azul do mar
Daria pra beber todo azul do mar

Foi quando eu mergulhei no azul do mar
Foi assim, como ver o mar
A primeira vez que os meus olhos se viram no seu olhar
Não tive a intenção de me apaixonar
Mera distração e já era momento de se gostar
Quando eu dei por mim nem tentei fugir
Do visgo que me prendeu dentro do seu olhar

Quando eu mergulhei no azul do mar
Sabia que era amor e vinha pra ficar
Daria prá pintar todo azul do céu
Dava prá encher o universo da vida que eu quis prá mim
Tudo que eu fiz foi me confessar
Escravo do teu amor, livre para amar
Quando eu mergulhei fundo nesse olhar
Fui dono do mar azul, de todo azul do mar
Foi assim, como ver o mar
Foi a primeira vez que eu vi o mar
Onda azul, todo azul do mar
Daria pra beber todo azul do mar
Foi quando eu mergulhei no azul do mar


(Todo Azul Do Mar, Flávio Venturini e Ronaldo Bastos)


Lições de uma greve

Toda negociação envolve um alto grau de responsabilidade entre as partes envolvidas, que devem buscar o ponto médio de atender a todos os interesses e não podem exacerbar seus argumentos de forma a prejudicar os acordos possíveis. Se o processo envolver o direito de terceiros, o cuidado deve ser redobrado, assim como o peso de responder por prejuízos causados.

A greve dos condutores do transporte coletivo de Campinas foi marcada por uma série de irregularidades e ilegalidades, ferindo o direito constitucional dos cidadãos e expondo a falta de habilidade para conduzir uma negociação séria e relevante. A cidade parou por três dias, com enormes prejuízos causados em todos os níveis, direta ou indiretamente. Negócios foram prejudicados, empresas sofreram com a falta de funcionários, a rotina das pessoas foi alterada covardemente, até mesmo com dificuldade de buscar atendimento de saúde. O protesto protagonizado pelo Sindicato dos Condutores rasgou a cartilha do bom senso, marcado pela intransigência, pelo uso político do evento e pela dissimulação de intenções.

Mais do que uma causa trabalhista, o interesse maior de toda uma comunidade estava em jogo. É preciso sensibilidade e pulso firme ao avaliar o mérito da ação e os métodos empregados. Não pode deixar de influir na decisão o direito inalienável do cidadão comum, pego no fogo cruzado das pressões e desdenhado como parte interessada na solução.

A situação chegou ao extremo tolerável. A cidade não pode ficar à mercê dos interesses de uma categoria sempre que houver reivindicações, por mais justas que possam parecer. Os baixos salários pagos a motoristas e cobradores dizem respeito aos próprios empregados, às empresas contratantes e à Justiça do Trabalho, no caso mediadora do processo. O mote da paralisação foi um reajuste salarial de 18% a 62% e o acordo foi firmado com índices de 7,92% a 17,2%, mostrando o absurdo da pauta levada inicialmente à mesa de negociações. O impasse criado pelo Sindicato dos Condutores revelou-se oportunista, extrapolou seu limite de razão e a greve só aconteceu por interesses políticos.

Fecha-se o círculo de responsabilidades com a Administração municipal, que banca parte do sistema de transporte coletivo com subsídios e deve zelar pelo ordenamento urbano afetado com a paralisação.

Em casos como o ocorrido nesta semana, é preciso que todas as partes envolvidas em maior ou menor grau imponham condições para garantir a ordem e o atendimento à população, fazendo valer o peso político que é requisitado em situações como a greve que afetou toda a região. Todos os agentes envolvidos nos acontecimentos – sindicatos, empresários, Justiça do Trabalho e Administração Pública – devem sempre eleger o interesse maior de Campinas e região, não tergiversando sobre aspectos menores.


(Correio Popular, 15/5)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O feminino coração de Deus

O coração de Deus é feminino
É a força de toda a criação
Capricho do destino, a Mãe da Invenção

O coração de Deus é uma criança
Que dança entre os sexos
É a força do Universo, uma eterna canção

E como é forte o feminino coração de Deus
O coração de Deus não tem segredos
Nem medos, só histórias bonitas

Carícias pequeninas para quem o quiser
O coração de Deus bate comigo
Me ensina e me ajuda a viver
Me dá matéria-prima para amar a mulher
E como é forte o feminino coração de Deus
(Feminino Coração De Deus, Sérgio Sampaio)

Uma greve absurda

Todo movimento reivindicatório é justo, em princípio, devendo as demandas serem resolvidas através da legítima intervenção das partes, que devem chegar a acordo que contemple todos os interesses em jogo. No contexto de debate sobre direitos de trabalhadores, a greve sempre foi utilizada como instrumento de pressão sobre as empresas e órgãos contratantes, antagonizando empregados e patrões na queda de braço pelas condições ideais de relacionamento profissional.

A greve do transporte coletivo de Campinas chegou ao cúmulo inaceitável da radicalização, do movimento que vem de encontro a qualquer medida razoável de negociação. A intransigência dos sindicalistas exacerbou e a cidade assistiu, mais uma vez, assombrada, a atos de violência, vandalismo e absoluta irresponsabilidade, ilegalidade exposta nas ruas, desafiando o poder de polícia do Estado. As intenções obscuras foram expostas nos índices apresentados pelo Sindicato da categoria, criando a ilusão de que o problema dos baixos salários de motoristas e cobradores poderiam ser resolvido por pressão descabida e inoportuna.

No segundo dia de paralisação, quando outra vez 600 mil usuários ficaram nas ruas sem a garantia de transporte que o acordo inicial previa, o caos reinou na cidade. Os ônibus circulavam em comboios escoltados, vários casos de agressão foram registrados, os piquetes recendiam a movimentos orquestrados para desestabilizar as negociações, as vítimas de todos os níveis se mostraram reféns de um grupo que não tinha propósitos ou barreira para seus atos agressivos e inconstitucionais.

O confronto é absurdo e a forma de ação altamente condenável. O Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Campinas e Região, hábil para levar uma oportunista paralisação da categoria, mostrou-se irresponsável por não saber conter os abusos registrados, inclusive ameaças explícitas de homens armados em motocicletas, intimidando trabalhadores e depredando veículos. Ao estabelecer o clima de confronto e desrespeito à população, os sindicalistas desafiaram o bom senso e devem responder por todas as consequências do movimento.

Alheio às formas de negociação modernas, sindicatos não raro colocam de forma arbitrária a opção pela paralisação mesmo em serviços públicos, colocando a população em geral no fogo cruzado de interesses, pagando o alto preço de apenas depender de transporte, atendimento de saúde ou depender de segurança. É o custo abusivo imposto pelos que insuflam as greves sem atentar que os maiores prejudicados nada têm a ver com a negociação direta entre empregados e empresas. Perde a cidade pelo caos armado de maneira arbitrária e irresponsável, e perdem os trabalhadores do setor, marcados pela inconveniência de seus atos e colocando por terra o que poderia ser uma justa reivindicação de justiça salarial.

(Correio Popular, 13/5)

Serafim e Seus Filhos

São três machos e uma fêmea, por sinal Maria
Que com todos se parecia
Todos de olhar esperto para ver bem de perto
Quem de muito longe é que vinha
Filhos de dois juramentos, todos dois sangrentos
Em noite clarinha
Ê A ÔO João quebra toco
Mané Quindim, Lourenço e Maria

Noite alta de silêncio e lua
Serafim o bom pastor de casa saía
Dos quatro meninos, dois levavam rifles
Outros dois levavam fumo e farinha
Bandoleros de los campos verdes
Dom Quixotes de nuestro desierto

Ê A ÔSerafim bom de corte
Mané, João, Lourenço e Maria

Mas o tal Lourenço, dos quatro o mais novo
Era quem dos quatro tudo sabia
Resolveu deixar o bando e partir pra longe
Onde ninguém lhe conhecia
Serafim jurou vingança
Filho meu não dança, conforme a dança

Ê A ÔE mataram Lourenço
Em noite alta de lua mansa

Todo mundo dessas redondezas
Conta que o tal Lourenço não deu sossego
Fez cair na vida sua irmã Maria
E os outros dois matou só de medo
Serafim depois que viu o filhos Lobisomem
Perdeu o juízo

Ê A ÔE morreu sete vezes
Até abrir caminho pro Paraíso

(Serafim e Seus Filhos, de Ruy Maurity)


segunda-feira, 11 de maio de 2009

Fumo: onde a presença do Estado é dispensável

Ao Estado cabe zelar pelos direitos dos cidadãos, estabelecendo as regras de relacionamentos e os parâmetros de convivência harmoniosa, ao passo em que supre as atribuições constitucionais de atuar nos setores essenciais. A intervenção oficial deve se restringir às questões de ordem tributária, de investimentos, obras e serviços, administrando a dinâmica do governo de acordo com as metas difundidas a claro. Assuntos que dizem respeito ao direito e hábitos dos cidadãos são regrados pela legislação que estabelece os limites de liberdade individual.


O uso do tabaco em locais públicos já ocupa há tempos o debate na sociedade, dividida entre as tendências de limitação absoluta do consumo, a exemplo de alguns países europeus, ou medidas conciliadoras, estabelecendo locais adequados onde fumar seria liberado. O interesse de defender o direito de quem não deseja inalar fumaça é procedente e deve ser estimulado a partir de restrições ao uso do tabaco. Pesquisas recentes mostram os efeitos nocivos da inalação involuntária da fumaça de cigarros, justificando a defesa dos incomodados. Várias investidas levaram à criação de uma legislação federal que determinou a instalação de espaços específicos para fumantes em empresas e estabelecimentos comerciais.

A nova lei antifumo sancionada nesta semana pelo governador de São Paulo José Serra instalou uma polêmica na opinião pública, trazendo consequências significativas no dia a dia das pessoas e lançando desafios para a sua implementação. Ao aprofundar os efeitos da lei com rigor inusitado, em confronto direto com o estabelecido por lei federal, o governo assumiu claramente o partido dos não fumantes, deixando de lado considerações importantes que poderiam contribuir para se atingirem os objetivos de preservação de saúde sem antagonizar as partes envolvidas.

Ao proibir o consumo de cigarro em quaisquer áreas de uso coletivo, salvo as exceções de estádios de futebol, quartos de hotel e ruas, o governo estabeleceu um perigoso precedente ao condenar sumariamente os fumantes como criminosos, alvos de uma perseguição que assume ares ideológicos, radicais. Mais do que intervir diretamente em hábitos legais, o governo usou de expediente condenável, deixando a sociedade dividida em duas facções sujeitas a uma avalanche de denuncismo e conflito que deveriam ser evitados.

Ressalve-se a inconveniência da lei que se mostra clara quando o Estado se arvora no direito de legislar sobre a propriedade privada, ao proibir o uso de cigarro em estabelecimentos comerciais como bares e restaurantes. O racional da medida seria limitar o fumo em locais públicos onde a presença das pessoas é compulsória, deixando para os empresários a decisão e risco de permitir ou não o fumo em seu estabelecimento. Aos eventuais clientes, a escolha entre o que lhe convém e o que realmente incomoda.

(Correio Popular,11/5)

Cigarro, minhas delícias


Cigarro, minhas delícias,
Quem de ti não gostarás?
Depois do café, ou chá,
Há nada mais saboroso
Que um cigarro de Campinas
e fino fumo cheiroso?

Cigarro, quanto és ditoso!
Já reinas em todo mundo,
E esse teu vapor jucundo
Por toda parte esvoaça.
Até as moças bonitas
Já te fumam por chalaça !…

Sim; – já por dedos de neve
Posto entre lábios de rosa,
Em gentil boca mimosa
Tu te ostentas com vaidade.
Que sorte digna de inveja!
Que pura felicidade!

Anália, se de teus lábios
Desprendes subtil fumaça,
Ah! tu redobras de graça,
Nem sabes que encantos tens.
À invenção do cigarro
Tu deves dar parabéns.

(...)

Cigarro, minhas delicias,
Quem de ti não gostará?
Certo no mundo não há
Quem negue tuas vantagens.
Todos às tuas virtudes
rendem cultos e homenagens.

És do bronco sertanejo
Infalível companheiro;
E ao cansado caminheiro
Tu és no pouso o regalo;
Em sua rede deitado
Tu sabes adormentá-lo.

Tu não fazes distinção,
És do plebeu e do nobre,
És do rico e és do pobre,
És da roça e da cidade.
Em toda a extensão professas
O direito de igualdade.

Vem pois, ó meu bom amigo,
Cigarro, minhas delícias;
Nestas horas tão propícias
Vem dar-me tuas fumaças.
Dá-mas em troco deste hino,
Que fiz-te em ação de graças.

(Bernardo Gumarães, Rio de Janeiro, 1864)

domingo, 10 de maio de 2009

Gastos políticos necessários

A manutenção da ordem política é a forma mais adequada de preservar as instituições, dando solidez ao sistema que depende de estruturas fortes para se manter inflexível aos interesses oportunistas. Na rigidez das normas e prescrições legais reside a tranquilidade dos cidadãos, conscientes de seus deveres e obrigações na medida em que reflitam os conceitos de organização do setor público.

Um dos eixos da estrutura institucional é o sistema representativo, adequado à realidade cultural e social de cada nação, fundamentado em princípios democráticos que garantam a sua legitimidade popular. As distorções que se podem perceber no sistema são corrigidas a partir do debate político, da pressão da opinião pública e da maior conscientização dos eleitores, que dependem de informação para formar conceito de seus representantes. No Brasil, as instituições se mantém com razoável estabilidade, a despeito do esboroamento do pilar do parlamento, onde os abusos e as denúncias de corrupção tornaram-se evidentes e expostos francamente ao conhecimento público.

Quando a atuação dos parlamentares entra em xeque, é natural que se passe a questionar o ônus que a sociedade arca para manter o seu sistema, como a comparar os gastos com a produção legislativa e fiscalizadora com o tanto que se despende para sustentar vereadores, deputados e senadores, cercados de mordomias e remunerações que, em alguns casos, são fixadas em patamar absolutamente incompatível com a qualificação dos beneficiados.

É natural que os parlamentos disponham de recursos para garantir a sua operacionalidade e mesmo a independência do poder, para que os vereadores eleitos possam cumprir sua função precípua de legislar e fiscalizar atentamente os atos administrativos. Para tanto, faz-se necessário um quadro de assessores qualificados para garantir o perfeito entendimento a todas as demandas e isto grande parte dos lotados nos gabinetes faz. Mas também não escapa à percepção a sanha de usar estes recursos para quitar faturas de apadrinhamento político ou nepotismo, constantemente revelado em denúncias.

Para exercer plenamente a sua função institucional, os vereadores devem ser preservados do constrangimento de não poderem dispor de tempo para atuar ou mesmo não contar com suporte para o trabalho. O inquestionável, porém, cai por terra diante da aguçada percepção popular de que os abusos passam a ser uma constante na vida pública brasileiro. E isto, sim, desestabiliza a estrutura política de uma nação.

(Correio Popular, 10/5)

Perfect Day

Just a perfect day,
Drink sangria in the park,
And then later, when it gets dark,
We go home.

Just a perfect day,
Feed animals
in the zoo
Then later, a movie, too,
And then home.

Oh its such a perfect day,
I'm glad I spent it with you.
Oh such a perfect day,
You just keep me hanging on,
You just keep me hanging on.

Just a perfect day,
Problems all left alone,
Weekenders on our own.
Its such fun.

Just a perfect day,
You made me forget myself.
I thought I was someone else,
Someone good.

Oh its such a perfect day,
Im glad I spent it with you.
Oh such a perfect day,
You just keep me hanging on,
You just keep me hanging on.

Youre going to reap just what you sow,
Youre going to reap just what you sow

Dia Perfeito


Apenas um dia perfeito
Bebendo sangria no parque
E então mais tarde
Quando escurecer, nós iremos para casa

Apenas um dia perfeito
Alimentando os animais no zoológico
E então mais tarde
Um filme também, depois iremos para casa

Oh, isto me parece um dia perfeito
E eu estou contente por estar passando ele com você
Você apenas me deixa no ar

Apenas um dia perfeito
Problemas deixados de lado
Finais de semana somente nós
Isso parece divertido
Apenas um dia perfeito
Você me fez esquecer eu mesmo
Eu pensava que eu era qualquer um,
uma pessoa boa

Oh, isso me parece um dia perfeito
E estou contente por estar passando ele com você
Oh, parece um dia perfeito
Você apenas me deixa no ar

Você irá colher o que você plantou
Você irá colher o que você plantou


sábado, 9 de maio de 2009

As fronteiras rompidas pela violência

As fronteiras da violência estão além dos limites dos municípios, da localização das fontes de atração de criminosos ou dos fatores facilitadores da inserção de pessoas no crime, como forma de subsistência ou meio de vida. A insegurança se alastra por todos os lados e em todas as circunstâncias, como uma chaga incurável que toma o corpo da sociedade, gerando a sempre presente sensação de ameaça e medo.

Não é de hoje que a sociedade clama por uma política pública eficaz de segurança, compatível com a necessidade elementar de preservação da integridade física e patrimonial, sem ter que se sujeitar aos espasmos de grupos que se organizam para se beneficiar da impunidade e falta de ação dos agentes de segurança, atados pelas mãos na falta de recursos, pessoal e instrumentos de aplicação da lei. O crime é a palavra de ordem em todas as cidades, não havendo exceção que não seja a variável da violência explícita ou nível de gravidade.

Os moradores das metrópoles incorporaram em boa parte a convivência com criminosos, tendo os espaços limitados pela insegurança, pelos hábitos determinados pela prevenção. Habituaram-se de forma mórbida a evitar locais perigosos, já facilmente identificados nos mapas da falta de policiamento. Os pequenos municípios ainda ostentam o indisfarçável alívio de poder conviver em paz, de manter saudável distância de acontecimentos nefastos, de poderem circular livremente e em paz pelas ruas, sazonalmente abaladas por um crime menor.

Mesmo esta aparente tranquilidade está com os dias contatos. A pacata Estância Mineral de Águas de São Pedro, o menor município do Estado, com apenas 2 mil habitantes, acaba de criar a sua Secretaria de Segurança Pública, após o alarme do aumento do número de ocorrências policiais no município. Entre os moradores, persiste a esperança de que ainda podem se manter distantes das ameaças da sociedade moderna, a ponto de deixar portas e janelas abertas como deveria ser nas comunidades ideais. Mas a prevenção e o medo entraram definitivamente no assunto das conversas e é indisfarçável o incômodo da nova situação.

Ao romper a barreira de tranquilidade de uma pequena cidade, a violência se faz presente em todos os quadrantes do Estado, como consequência de um desequilíbrio profundo e uma estrutura social doente, que permite que os cidadãos de maneira geral – jovens e mulheres, em especial – entrem para o crime como alternativa de uma vida sem perspectiva e sem apoio. O Estado precisa agir, repensar a questão da segurança como um todo, não desdenhando de qualquer vertente. Cabe a ele zelar pelo encaminhando da vida das pessoas e garantir sua estabilidade. O que não é exigir demais.

(Correio Popular, 9/5)